Saraiva+Associados

06.07.2021

O Novo Comércio: A um Passo da Distopia?

Tiago Tavares • Architect S+A

 

Los Angeles 2019, após um mergulho vertiginoso numa realidade distópica, emergimos num consumismo exacerbado reflexo de um colapso moral da civilização. O modelo futurista apresentado por Ridley Scott em Blade Runner, reflete uma sociedade deprimente, imperfeita, sem princípios morais e igualitários, transposto para uma cidade irracional, sem a presença de espaços comuns e orgânicos, numa realidade marcada pela separação clara entre classes.

A visão noir e decadente de um universo sombrio e desanimador transporta-nos de uma sociedade refém de uma globalização e de falta de princípios, para uma realidade paralela presente, que promove uma sociedade tanto “social”, como ao mesmo tempo introvertida.

Embora distante do universo de Los Angeles imaginado por Ridley Scott, assistimos actualmente a uma afirmação cada vez mais crescente de uma realidade digital, intensificada pelos tempos de pandemia. O confinamento e a anulação da socialização desenharam um contexto que parece caminhar em direcção a um abismo distópico. Estaremos a assistir a um prenúncio da distopia antecipada em 1982 em Blade Runner? Será a presença online a única realidade que nos restará num futuro próximo, distante de espaços comuns e de experiências reais e sociais?

Uma análise da realidade comercial recente, aponta para uma crescente presença do marketing digital e do e-commerce. A indústria do comércio está de facto a reescrever as leis da física e a relação entre o produto e o consumidor, apostando fortemente numa interacção cada vez mais personalizada e direcionada às necessidades específicas do indivíduo. A influência dos espaços online alteraram consideravelmente o comportamento comercial dos consumidores o que levou a um aprimorar por parte dos retalhistas da sua presença digital, mas também a uma redefinição da sua presença offline. Será a imediata disponibilidade global que o online nos proporciona uma morte anunciada do espaço comercial físico?

Analisando o mercado asiático, responsável actualmente pela grande inovação nos espaços comerciais, um novo passo tem sido dado na direção da experiência do comércio. Espaços inovadores promovem a venda de produtos, mas também uma imersiva experiência de entretenimento, oferecendo a oportunidade aos consumidores de socializarem, descobrirem, aprenderem, participarem e partilharem, deslocando o sentimento de comprar para o sentimento de experimentar. A relação entre o consumidor e o vendedor deixa de ser um simples ato de transação para se transformar num ato social, que desperta a curiosidade e adiciona um valor ao espaço físico que dificilmente poderá ser replicado no online. Um exemplo da redefinição do espaço comercial em torno da experiência é a marca Gentle Monster, responsável pelo redesign no centro comercial de luxo SKP-S em Pequim, que introduz um conceito radical designado por Digital-Analog Future retratando um mundo onde os avanços tecnológicos diluem os limites da realidade humana e digital. Os espaços mantêm a sua essência comercial, mas apresentam uma experiência imersiva, onde, cuidadosamente desenhados, reflectem o ADN da marca, ao mesmo tempo que oferecem numerosas oportunidades fotográficas facilmente e numerosamente partilhadas através das redes sociais, contribuindo para uma rápida e eficiente promoção.

Gentle Monster, SKP-S. Pequim. República Popular da China.

Estamos perante um novo conceito, uma reinvenção do princípio comercial que retrata uma nova experiência social aliada a um ato secular –  Retailtainment.

A ideia de expansão foi substituída por um conceito de consolidação em locais estratégicos, convertendo as numerosas e insípidas áreas comerciais em flagships stores que promovem a experiência e a divulgação comercial. Em vez de substituir por completo a realidade espacial do universo físico, o mundo digital serve como complemento e fator de aprimoração do espaço real, desencadeando mecanismos secundários que promovem uma maior interação entre o consumidor e a marca. A realidade das redes socias servem como propósito de expansão e de divulgação do espaço comercial. Servindo-se deste meio, marcas globais como a UNIQLO promoveram vouchers virtuais que seriam activados apenas com um scan aos QR codes à entrada das lojas, aliando um conceito online a um conceito offline, fazendo depender a experiência comercial de um contato efetivo com o espaço físico.

É assim claro que o crescimento de um meio não implica a morte do outro, mas sim a sua redefinição e adaptação. Os espaços comerciais estão globalmente reféns do universo digital, mas a sua sobrevivência não depende exclusivamente da sua existência online.

Se nos desviarmos de uma escala menor do retalhista e equacionarmos uma escala ao nível do promotor podemos também equacionar o real impacto do fator digital no negócio imobiliário e na sua conceção espacial. A crise pandémica e também a crescente presença do mercado online parecem diminuir a necessidade de socialização, no entanto a conceção de Victor Gruen’s Southdale Mall de 1956, não é um reflexo do contexto actual e a sua ideia de espaço comercial introvertido não promove uma adequada promoção da experiência urbana nem tão pouco tem uma viabilidade económica. O espaço social e os vários elementos que intensificam a sua ativação contribuem para uma crescente valorização comercial, não só através de uma divulgação mais acentuada como também através de um contato mais extenso e directo com as várias marcas.

A redefinição do comércio está a processar-se através da forma como os consumidores utilizam as áreas comerciais. O foco dos promotores está a desviar-se para o conceito retailtaintement, levando à criação de áreas dedicadas a setores específicos como lifestyle, fitness e art exhibition,  transformando a experiência comercial numa viagem experimental de integração social.

Funan, Singapura

O futuro dos espaços comerciais está intrinsecamente dependente da ligação com o tecido urbano e com a sua flexibilidade e disponibilidade de integração com espaços sustentáveis e interpretação das necessidades sociais. Não é apenas o fornecimento de um simples serviço, mas acima de tudo a disponibilização de uma experiência que permite a ativação e promoção de várias marcas.

O comércio do futuro não é deprimente e noir, é uma experiência rica e complexa que promove uma interação mais personalizada entre o consumidor e o retalhista.

A eficiência e disponibilidade online contribuem para a reinvenção do sector, mas não o redefinem em termos globais, inviabilizando a sua existência. Estamos ainda perante um reposicionamento e requalificação dos espaços comerciais que exigem uma maior criatividade no campo do design para a sua reafirmação numa nova realidade.

Enquanto designers temos que nos questionar sobre o caminho que queremos trilhar, mas também pensar no que socialmente contribuiu para o desenvolvimento de uma sociedade mais equilibrada e inclusiva.

Sem negarmos a realidade online e offline, temos de acentuar a nossa presença na criação de espaços e experiências e isso reflete uma afirmação sobre o percurso que pretendemos marcar. Estamos a um passo de uma distopia, ou queremos inverter o nosso caminho e desenvolver um percurso social promotor de uma realidade experimental inclusiva?

 

 

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